sábado, 21 de março de 2009

Corroi-se

"Fazia algum tempo que aqueles pequenos olhos nao tocavam o céu daquela maneira. Talvez eram de mentira. As nuvens cinzentas com formas variadas, o azul claro de profundeza relevante, os montes que pareciam ora perto, ora longe. Tudo aquilo tocado por um par de corneas. Profundas lentes. Nos montes, as pequenas casas expeliam uma mistura de fumaça e vapor pelas chaminés construidas por tijolos de cor branca, que por causa do tempo, ja haviam sido transformados em pedaços de pedras com alguns pontos verdes, cinzas, que mostravam a corrosao que sofriam.

Na realidade, tudo se corroi com o tempo. Pensava ele. Tudo. Animais se corroem. Pedras se corroem. Frutas se corroem. Pessoas se corroem. Ate pensamentos se corroem. Porem os sentimentos sao diferentes. Eles corroem primeiro o que esta em volta para, depois de dissolver tudo que ha por dentro, se auto corroer. Talvez os sentimentos se assemelhem a agua. O que corroi as pedras na praia, sao as ondas que insistem constantemente em bater. Quando uma fruta é mergulhada em um copo de agua, ela se dissolve, sem pressa, naquela lenta maresia de poucos minilitros. Corrosiva, a agua tambem se consome.

Apoiado com os cotovelos na grade da pequena sacada de azulejos brancos com riscos em forma de raios beges, ele permanecia com os olhos fixos na pequena imensidao que obtinha. Detalhe por detalhe, ele abria sua mente à procura de algo que se assemelhe, e que ja tinha visto. E paisagem parecida com aquela que via de vastos campos com pequenas porçoes de verde, casas construidas no meio do ambiente bucolico, pessoas que passavam devagar na pequena via proxima, vestidas com seus casacos mais resistentes ao frio que fazia, ele nunca tinha visto.

"O ceu esta colorido." Azul, vermelho, um leve tom de roxo e um ponto amarelo central. Analisava ele, apontando. O calor corroia a agua. Seja o calor natural que o sol pode dar, dia apos dia, ou seja o calor artificial de maquinas de aquecimento. De alguma forma, o calor fazia com que a agua fosse embora. Olhando para baixo lentamente, ele sentia vergonha de pensar essas coisas em uma altura dessa. Mexia os pés lentamente, primeiro o calcanhar ia para a direita, logo em seguida para a esquerda, como se estivesse enterrando debaixo da sola algo que quer esconder. As maos entrelaçadas seguravam com força o calor que sentia, contra o pequeno vento frio que fazia nos fins de tarde.

Por mais longe que estevam, as pessoas que passavam na rua pareciam proximas, quase como se ele pudesse estender as maos, toca-las por um instante, sentir o calor que saia de seu corpo com um abraço forte, caricias leves, um beijo devagar e molhado com os olhos fechados. Leves toques das maos nas costas largas, com um movimento de ir e voltar intenso, que aos poucos subiam até a cabeça e a segurava com força, puxando um pouco dos cabelos morenos e curtos. As maos faziam com que o movimento das linguas se tornasse mais proximo e intenso, os olhos se cerracem mais fortemente e os labios se abrissem, fazendo com que o contato, antes leve, fosse incandecente, como em uma fonte de calor.

Aquelas imagens o corroia por dentro. Ao fechar os olhos, pouco a pouco, como em pequenos traços em um album que é aberto e as paginas passadas rapidamente pelas pontas dos dedos, suas vontades ficavam maiores. A solidao e o medo de se fazer compreender pelos gestos e cuidados o tornavam fraco e pequeno diante da serena imensidao que a cornea tocava. A fumaça das casas se fazia mais presente de acordo com a queda de temperatura. Ali estaria a agua. O vapor era aquela pequena porçao de agua que o calor consumiu.

O sentimento por sua vez permanecia no ar. A agua nao pode ser corroida. Quando desaparece, é porque esta presente de alguma forma em algum lugar. O vapor, o gelo, os pequenos flocos de neve que começariam a cair do ceu. O que ele sentia nao poderia se auto corroer. Um dia vira vapor, mas na outra noite fria quando nao se podera mais ver a lua crescente no ceu, a chuva cairia e traria para ele novamente todos seus medos, receios e dor que um dia foram tragados pelo vazio do coraçao. O pequeno ponto amarelo central que iluminava o ceu tinha desaparecido. Sobravam rastros de sua luminosa existencia nas cores sombrias que, junto com as nuvens cinzas e esparças, desenhavam figuras sem nexo. Do outro lado, a pequena lua crescente começava ja a refletir a luminosidade que ela mesma nao possui. Ele permanecia ali, admirando aos poucos o que deveria ser consumido por ele proprio, mas nao conseguia.

Talvez isso nao pode ser consumido, pensavam seus olhos fixos. Como a agua e o sol, um dia retornam. Diferentes, mas retornam para dar calor ou esfriar mais aquela sensaçao de solidao que um dia o atormentou. Capaz de se fazer entender, ele virou para o lado e disse: “Acho que esta frio para ficar aqui fora, vamos entrar?” A outra pessoa passou em sua frente o olhou e balbuciou: “Faz frio aqui fora.” E antes de adentrar primeiro ao quarto, apontando para as nuvens que apareciam no horizonte, completou: “ Acho que a neve esta chegando!”. Apos que a outra entrou, ele admirou pela ultima vez o ceu, olhando para o lado inverso de onde seus olhos estavam fixos e onde o sol estava: a pequena lua crescente havia desaparecido. A solidao tinha entrado. E seus sentimentos, nem a agua corroia."

(Texto produzido dia 21/03/2009)