"A noite parecia mais escura naqueles dias. Era a neblina que envolvia com seu mistério os postes de luzes amareladas, os prédios com suas poucas janelas acesas e os faróis dos outros carros que se locomoviam lentamente, desviando um dos outros, das ruas pequenas, dos sinais de trânsito que os impediam de seguir em frente e manter uma velocidade mediana.
O rádio permanecia ligado e, a cada música, o motorista tirava o pé do acelerador ou fazia com que o carro corresse mais. Dependia do ritmo, da forma com que ele fosse envolvido. O condutor não fazia de forma abrupta as oscilações de velocidade. Mantinha o pé encostado ao eixo de aceleração, a mão direita, quando necessário tocava levemente o câmbio, mas maioria do tempo, auxiliava a mão esquerda que permanecia ao volante, segurando também um cigarro que queimava lentamente.
Os olhos do condutor percorriam, por um segundo, todas aquelas ruas, uma por uma, ele as visitava, conseguia enxergar cada casa, cada cão de guarda, cada jardim bem cuidado ou não, cada reflexo da televisão ligada no vidro da porta. Quando se notou, tudo parecia em câmera lenta, apenas o que suas lentes recebiam seria o flash de luz dos automóveis, das poucas motocicletas, dos semáforos, e seus possíveis reflexos nas vitrines das lojas, nos tênis brancos luminosos dos transeuntes, nos retrovisores em movimento. O que captava: reflexos, sinais, todos lentamente processados. Talvez refletissem a paz de espírito que sentisse. Mas não era isso. Diante decisões, problemas, dúvidas, o motorista apenas dirigia na neblina.
Ele não estava sozinho. Tinha alguém ao seu lado. Em silêncio, mas estava lá. O mesmo silêncio que ele ouviu na outra noite. Ambos permaneciam quietos, o sinal fechou. O carro foi parando lentamente, enquanto a velocidade ia diminuindo, os olhos do motorista abaixavam-se para o asfalto negro, úmido da chuva que havia caído durante a tarde. A mesma música da outra noite começava a tocar. As mãos do condutor começavam a tremer, o sangue parecia gelar a cada batida, um arrepio subia pelas costas. Estava lembrando-se da outra noite.
O silêncio era tanto que se dava para ouvir a respiração deles. Não estavam mais conversando, discutindo. O que se ouvia eram as respirações ofegantes. Ele, o motorista que antes era o ouvinte, não precisaria se aproximar da porta, nem sequer fazer algum esforço. O que acontecia naquele quarto era passível de visualização. Naquela noite, a neblina não estava do lado de fora, estava dentro dele, do quarto, da casa. As mãos dele tocando com força as costas dela, os corpos despidos que se juntavam frente a frente, os seios dela roçavam no tórax nu. A respiração parecia aumentar, o ar ficava sem oxigênio como se uma fumaça branca tomasse o quarto lentamente. Ela estava sentada sobre ele, os seus membros já tocados, molhados de um quase gozo, de um delírio que guardavam para o final.
O movimento começava a ficar intenso, ela se virava sobre seus joelhos no colchão. O rapaz em estado de ereção encaixava-se nela por trás, segurando-a pelos cabelos, como se fosse trotar em um cavalo arredio. Ela agarrava o lençol bege da cama, estendendo seus braços sobre a cama vazia. Os olhos de ambos permaneciam fechados, abriam-se lentamente para um descanso da mente, para que os olhos pudessem gravar aos poucos o momento, a repetição. Ele, com seu membro ereto, ia para frente e para trás em um movimento que se firmava mais forte, a cada final de ciclo. Os gemidos baixos se faziam alto, os toques de pele que estalavam se tornavam presentes a cada segundo mais. As mãos dele agora seguravam os seios dela, as pontas dos dedos acariciavam ambas as auréolas, pressionadas pelos entre dedos, o que a fazia soltar um grito abafado de prazer.
Do outro lado da porta, os olhos fechados faziam da cena mais lenta na cabeça do quase espectador. Os corpos voltavam a se encontrar frente a frente, boca a boca. As línguas dançavam em um ritmo que seguia a música tocada pelos membros, freneticamente, aumentando. Os dentes eram colocados no pescoço, uma mordida para que se evitasse soltar mais um grunhido, a respiração permanecia forte, mas era interrompida pelos lábios dela que sugavam a pele do pescoço dele, fazendo com que ele puxasse o ar pelos dentes. Ele começava a abaixar a cabeça e começava a lamber a pele nua da garota, beijando-a, mordendo-a, até que ele chegasse no meio dos seus seios. Tudo acompanhado pelo compasso de seus membros que permaneciam juntos, vezes mais longe os pelos, vezes mais próximos.
A inércia do lado de fora de opunha ao movimento que se fazia dentro, do barulho constante. Como os carros que tinham passado pelo sinal aberto, enquanto o motorista de olhos baixos esperava. A neblina na rua fazia com que tudo se misturasse em uma memória apenas, fazendo com que a frente do motorista o preto do asfalto fosse um precipício para suas lembranças. “O sinal abriu”, disse a companhia ao seu lado.
Ele, como se votasse de um transe, olhou para a pessoa ao seu lado com lentidão, os olhos ainda baixos focalizavam o painel do carro, cheio de cores, verde, amarelo, vermelho. “Põe a luz alta, o farol baixo não está ajudando na neblina”, completou o acompanhante. Mais uma vez, o condutor parou o movimento com os pés, olhou fixamente os olhos do outro. O carro começava a andar lentamente, o sinal fechara novamente, dois carros começavam a cruzar a avenida cada um vindo de um lado oposto, freadas bruscas, corpos para frente e para trás.
Os três carros parados no semáforo. Dois faróis com faróis e um ao centro. Mãos ao volante inertes. A neblina enganou a todos. “Está tudo bem?”, perguntou o motorista. Com uma afirmação com a cabeça, o passageiro passou a mão pelas pernas, mostrando ansiedade. Os outros dois carros permaneceram um frente ao outro, dando sinais de luz para que o outro prosseguisse. “Desculpa”, era só o que ele conseguia falar ao engatar a primeira marcha.
O passageiro não era ninguém da outra noite. Na realidade, para o motorista, não era mais ninguém fazia algum tempo. Ao chegar ao destino do acompanhante, os dois se entreolharam, esboçaram algo indefinido pelas suas bocas. “Me diga o que você quer ouvir”, começou o acompanhante. Os postes amarelos não iluminavam tão bem a rua por causa da neblina, o carro permanecera ligado com os faróis baixos. “Cansei de sinceridade, cansei de ter segredos, cansei de enxergar”, sussurrou o motorista. Ambos permaneceram em silêncio, e após se despediram com um beijo carinhoso que selava os lábios. Fechando a porta, o passageiro apenas disse, apoiando-se na janela do carro: “Não pisque, a neblina está muito forte. Faróis altos, certo?”.
Enquanto se distanciava, quarteirão por quarteirão, o motorista via pelo retrovisor a pessoa que estava parada ainda em frente a casa, tentando reconhecer na neblina os faróis vermelhos do carro ficando mais distantes. O motorista precisaria ligar os faróis altos, mas tinha receio de enxergar mais profundamente na noite. Os faróis baixos durante um dia de neblina funcionavam perfeitamente, o que não se pode ver a olhos nus apenas pode ser sentido de noite.
Os dias começavam com uma neblina espessa no meio da multidão, dos carros. A necessidade de enxergar tudo não valia o processo de se ligar os faróis. A bateria estava acabando, o peso no porta-malas era grande. Com os olhos baixos, o motorista daquela noite começava a caminhar devagar pela manhã pouco iluminada, como se algo em seus ombros doesse, como se as buzinas, os barulhos dos motores fossem entrando na sua cabeça e se tornavam indiferentes.
“Me diga o que você quer ouvir”, relembrou o motorista da fala do passageiro daquele dia. “Algo que não machuque os meus ouvidos. Algo que a neblina esconda e que ninguém mais possa nem ver, nem ouvir”. Quanto maior é o esforço para se ver na neblina, menor é a velocidade percorrida, menos desloca-se. Quanto maior a neblina, maiores os mistérios, os murmúrios, as dúvidas do que pode estar bem à frente. Os dias pareciam mais escuros naqueles dias."
(Texto produzido dia 04/04/10)