domingo, 15 de maio de 2011

Passo póstumo

“Even that when we're already over,
I can't help myself from looking for you”
Adele


O óculos escuro já não era necessário naquele dia nublado, frio, desamparado. As grandes lentes pretas escondiam os olhos baixos, levemente irritados, do vento que cortava a face. Os passos vagos pela calçada, as mãos dentro do bolso da bermuda que cobria até os joelhos, o pensamento errante divagava lentamente ao toque da brisa, recolhendo-se a cada carinho que as curvas do rosto recebiam.

Em palavras não se conta uma história. Não apenas. A sua ordem pelas frases de nada vale se não fizerem sentido para um, ou dois. Dessa história queria contar apenas para que possam se abrir ao que já está gravado na pele, as cicatrizes indolores tatuadas inconscientemente.  Uma história que poderia ser um romance, um grande livro vendido nas prateleiras amareladas, e ao mesmo tempo uma crônica, conciso retrato de um estado de espírito.

Grandes amores não surgem de uma hora para outra, desestabilizam, impregnam o corpo e o envenena.  O tempo é fundamentalmente necessário. As fases passam, as pessoas podem ficar mais um pouco, mas em algum lugar ali dentro, a escuridão silenciou o inquieto sentimento. Sob os escombros, algo ainda pulsa, disfarçado de dor, orgulho, medo, repúdio, piedade. Permanece adormecido, porém vivo.

Ao despertar, as dores, as causas, as tempestades desaparecem. Quando verdadeiramente ele acorda, os olhos cerrados levemente, a boca sem contração, a mesma posição, os corpos que trocam calor. Qualquer coisa que possa demonstrar o meu amor. Amor escondido, receoso, machucado, que se aquecia mais uma vez. O tempo agiu entre nós, o espaço, as pessoas. Hoje o seu amor não é mais meu, sua atenção, seu toque.

Mas durante segundos, como pela primeira vez, o coração inquietou, as mãos tremeram. A resposta do corpo, da vontade da alma, tomou todos os cômodos da casa vazia. Os olhos que invadem o olhar do outro, admirando a sua leve profundidade, sua singela complexidade. As pontas dos dedos que escorregam pela pele, os reflexos dos pelos que se ouriçam, os lábios que se tocam, a respiração que fica gradualmente ofegante. O exterior tremula e o interior estremece.

Durante muito tempo, procurei por muitos lugares e, sem notar, a sua figura estava presente em cada sombra minha. Não sabia compreender o que restava comigo, se havia luz ou se haviam se apagado. Nós poderíamos ter conseguido tudo o que desejávamos. Aliás, os que ainda desejamos, os anos não apagaram, os mesmos desejos, a mesma vontade. Uma figura que não remete à nostalgia, mas constrói novos caminhos, novas trilhas. Talvez as mesmas que eu passei e não tinha notado sua presença nelas.

Não importa quanto esforço será feito. As coisas darão errado ou certo. Sei o que está guardado e quando clamarem por ele, responderei. Mas se o fizerem novamente, meu amor tomará a frente. E o seu é o que me impulsiona a seguir em frente. Se eu agir como se não me importasse, é porque de alguma maneira quero manter intacto o frescor da brisa que paira por entre as paredes trancadas. E eu faria qualquer coisa para que o mundo entendesse. Para que você sentisse, de verdade, o meu amor retribuído.

E o que já estava escrito, hoje é uma página em branco. Nenhuma história termina, nada pode apagar pequenas palavras, postas e dispostas de acordo com o futuro. Não se dá um título a uma obra não finalizada. Como em uma lembrança póstuma, o passado prescreve e o futuro escreve as gotas de chuva que escorrem através das lentes escuras, incerto, vagante. Qualquer passo para mostrar meu amor.”

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Insomnia

"As noites se pareciam dia. Os dias apareciam de noite. Madrugada por madrugada, eu perdia a noção de espaço, de tempo. Muitas das vezes eram pensamentos que pairavam longe, idéias vagas que começavam a tomar a cabeça como de assalto, de surpresa, e possuíam todo um ambiente, preenchiam com total naturalidade uma mente inocente, sem vínculos com o que estava por detrás daquelas janelas escuras que me impediam de olhar além. Muitas vezes essas idéias eram mínimas, eram sonhos, expectativas de uma meta inalcançável, de objetivos vãos, de um parâmetro tolo.

Não sei explicar. Minha grande cama com um lençol cinza novo, almofadas de penas de ganso com fronhas de cores aleatórias, como verde e vermelho, ou azul e amarelo, além do meu, e inseparável, edredom. Confortável, aconchegante. Minha cama seria um belo de um recanto do sono. Mas nas últimas semanas não tem sido. Outro dia foi por causa do temporal que estremeceu até a porta. Semana passada foi por causa do calor que nem sequer amenizava  com a presença do ventilador de teto. Dias atrás, novamente, a chuva e o barulho de passos no corredor dentro de casa que me deixaram alerta para tentar reconhecer de quem seria aquela marcha. Mas não é sempre que há uma desculpa sólida, como hoje em que ao deitar, as palavras surgiam à mente, especulavam sobre meu futuro, e mais uma vez me encontrava sentado com o computador ao colo observando o quadro azul pendurado na parede.

Fechava os olhos, tentava pensar 'azul', que dizem trazer tranqüilidade e, em diversos momentos, comigo funcionou essa técnica de materializar na escuridão das pálpebras cerradas a cor dos mares e céu. Porém não funcionara. Pensei em coisas então boas, conquistas, momentos de felicidade, e a única coisa que obtive foi resgatar mais memórias, mais histórias. Enquanto tudo isso acontecia internamente, meu corpo por fora relatava indiretamente esse movimento cerebral, seja virando de um lado para outro, seja arrumando pela milésima vez o travesseiro, ou apenas mexendo os pés em um movimento rápido, contínuo, como se estivesse impaciente.

Talvez seja isso, afinal. Seria falta de paciência ou apreensão? Com certeza nada em minha mente para me tirar o sono. Já se foram os dias em que poderia perder horas por problemas comigo, com outros, com o mundo. Nas últimas semanas, apenas tive momentos muito bons, reencontrei-me, finalmente tive a paz de espírito tão almejada. Antes dormia para me refugiar de medos, acordava assustado, com receio de que pesadelos se tornassem reais, por mais que grande parte apenas estava entrando de fora para dentro, e não o caminho inverso. A tempestade lá fora estava dentro de mim. Hoje, ela permanece apenas impondo respeito fora dessas paredes, sem fazer com que eu a tema.

Finalmente consegui enxergar que se aqui chove, em outra parte do mundo não. Um mundo de possibilidades se abrira em minha mente. Antes o que era um refúgio, um quarto branco, hoje se torna de natureza acesa, colorida. Se eu sinto falta de algo? Talvez da minha rotina e das suas próprias quebras. Sinto falta do meu espaço, do meu próprio lugar. Essa parte entra o grande paradoxo que acabei construindo, e diversas pessoas também devem ter passado ou passam pela mesma situação: aqui é meu lar, mas não minha casa.

Casa é onde criamos oportunidades de crescer, onde podemos ter algo que chamamos de nossos, seguirmos nossas vidas de acordo com o que estabelecemos ser certo para aquele momento. Lar é onde podemos voltar sempre que as oportunidades afundam, quando o próprio espaço começam a se tornar sufocante e as decepções da vida nos arrastam e esfregam areia em nossos rostos limpos. Quando menor, minha casa era meu lar. Hoje, tendo em vista minha situação, casa se tornou outro lugar, mas o lar nunca se muda, apenas pode transferir-se, caso as pessoas nela contidas, e também responsáveis pelo nome que recebe, também se vão para outro.

Sinto realmente falta da minha casa, do meu espaço, da minha rotina. Mas não que isso seja o motivo de eu não conseguir dormir. Em vez de querer estar aqui, vezes deitado de bruços, vezes sentado, gostaria de estar andando por outros lugares, reparando em rostos, dançando aquela música até amanhecer, cantando para quem quisesse ouvir. Sinto falta das minhas quebras de rotina, dos meus surtos, de querer caminhar, fazendo frio ou calor, de chegar atrasado sem motivos aparentes ou adiantado com segundas intenções, sem ter que explicar muito. Quis fazer e fiz. Mais um paradoxo: descobri que sinto falta de me sentir “aprisionado” em minha rotina, mas, ao mesmo tempo, de me sentir mais livre para poder quebrá-la da forma que eu quiser.

Mas nem isso seria motivo para que eu perdesse meu sono, pois sei que cedo ou tarde isso deve acabar. Então, se nada disso pode ser, onde está o problema? Estaria com medo de dormir? Muitas vezes, quando adormeço, imagens me tomam tanto a mente, entram em forma de sonhos, de histórias inconscientes que revivo dias sim, dias não. Lembro-me até de uma vez estar despertando de uma espécie de cena cheia de mistérios, um tanto quanto sombria, porém familiar, que não me dava medo. Eu estava naquela nebulosa aparição duplamente. Em meio a grandes eucaliptos que podia sentir o aroma, eu narrava a mim mesmo o que deveria fazer, e ainda me relembrava a todo instante de epifania que na manhã seguinte eu deveria escrever sobre o que estava sonhando. Era até metalingüístico.

Tenho uma relação mais pacífica atualmente com meus sonhos e pesadelos. Antes eles até me assombravam. Quando pequeno, me lembro diversas vezes que tinha até receio de atravessar o corredor e chegar ao quarto dos meus pais para “pedir ajuda”. Até ao abrir a porta, me sentia desprotegido, um frio me tomava a espinha e as pernas, os meus olhos pareciam que sairiam da órbita de tão abertos que ficavam. Corria para a beirada da cama onde minha mãe até hoje dorme, a acordava e avisava: “Tive um pesadelo”, sussurrando mais pelo fator medo do que pelo fato de estar de madrugada.

Naquela paciência materna, ela avisava meu pai que acordava de sobressalto com a visita noturna, se levantava, me acompanhava até a minha cama, me colocava novamente sob as cobertas ou lençóis e se sentava, esperando a confiança retornar. Quando muito apavorado, pedia para que ela se deitasse comigo até que eu retornasse ao sono. Mais calmo, porém acordado, sempre a via saindo do quarto. Abraçava um dos travesseiros, virava o rosto para a parede e apenas esperava o sono chegar. E ele vinha. Agora, seja lá o porquê ele não se aproxima.

Mas, como descrevia, tenho uma relação muito mais harmoniosa com meus pesadelos, sonhos e até insônia. Tento descrever, entender, decifrá-los. Aqueles que eu me lembro com detalhes, e normalmente são os piores. Enquanto insone, faço dos momentos de ócio os mais produtivos. Me atualizo sobre meus interesses, leio algum livro que esteja  ao alcance das mãos no criado-mudo, ouço algum álbum recém-lançado ou apenas procuro aquelas clássicas para cantar sem reproduzir nenhum som, aliás, motivo que evito sair desse quarto, indo para o banheiro e voltando, quando necessário. Um barulho que for pode acordar a todos e essa sensação não é das melhores, como em um revival de quando era pequeno, tenho medo de abrir a porta, fazer algum ruído e despertar o monstro escondido em algum canto da casa.

Reviro-me, troco a lista de músicas, bebo um pouco de água e nada. Meu pai se levanta, nota a luz do quarto acesa por debaixo da porta e a abre, sem cerimônias, como costume desta casa. Me observa com um olhar de reprova, como se avisasse: “Vou contar a sua mãe!”. Mas não tenho culpa. Além disso, nenhuma para se perder essas noites de sono. Não me sinto culpado por nada, tenho a mais plena consciência de todas minhas ações e palavras. Aliás, culpa é algo que exclui das minhas noites e dias. Só devemos nos sentir culpados por coisas que fizemos e que prejudicaram outras pessoas, diretamente. Aliás, mais fácil alguém me prejudicar que eu a alguém, devido ao meu histórico de bondade excessiva. Mas passado às cinzas resta; o fogo que está queimando e as folhas em cima da mesa prestes a serem jogadas nas chamas me interessam mais.

Ainda permaneço sem nenhum sinal aparente de sono. Nenhum bocejo ou aparente cansaço mental ou físico. O quadro permanece no mesmo lugar, nele uma árvore sombreada que resiste em meio a um rio, um lago. Por entre as frestas da janela em tom escuro, a claridade do sol começa a aparecer, ainda bem fraco, e com a luz artificial apagada o quarto assume ainda aquele tom matinal de lugar fechado, onde tudo permanece escuro, mas nítido. Não entendo ainda o porquê dessas noites de insônia, não é nenhum medicamento, nenhum efeito colateral. Mas se tentar compreendê-la, seria uma preocupação, algo que me tiraria mais o sono. Então, que essas minhas novas noites apenas me tragam coisas boas, sem precisar perder o sono para ganhá-lo novamente. No final, mais um paradoxo. Mas o que seria melhor para um tema como a insônia? Uma oposição entre dia e noite seria clichê demais para mim. Então, um paradoxo entre perder sono e ganhar tempo. Como na vida, algumas coisas se esvairão, mas em contraste outras serão adicionadas. Como em uma balança que deve sempre manter-se equilibrada. Em paz."

(Texto produzido dia 14/01/11)