terça-feira, 24 de junho de 2008

Chorar

"Estou cansado de chorar.

Cansado de derramar essas lágrimas que ninguém pode ver. A dor que apenas eu sinto, o amor que só eu posso usufruir e as lágrimas que salgam a minha boca e que me fazem sentir menor do que eu poderia ser.

Estou cansado de ouvir que tudo ficará bem quando eu me sentir bem. Cansado de ouvir palavras de amor que não vem do coração. Meu coração estava congelado, não queimava mais, nem sentia dor. Hoje, não sei o que ele deseja: se prefere bater por alguém que me vê, mas não me enxerga; ou se ele prefere se esconder atrás das máscaras que visto todo dia quando acordo.

Máscaras sorridentes, irônicas e cheias de vida, como eu deveria ser. Eu até poderia tentar. Mas falta-me vontade de olhar para tudo e conseguir tirar alguma coisa positiva desse momento. Se momentos felizes existem, eu apenas passei por um ou outro. Hoje sei que o sol que bate na minha janela é apenas o anúncio de que ela ainda não chegou. Três da manhã, quatro, cinco, seis... Quando o sol ilumina ao longe e meu coração despedaçado permanece no chão, sinto que nem o calor dela pode me esquentar com o frio que vem de dentro.

Tenho medo de dormir aqui. Tenho medo de olhar para o lado e ver de novo tudo vazio. Tenho medo do interfone não tocar e eu esperar eternamente alguém que não vai voltar mais para mim. Agora ela é de outro. Pode ser uma vez apenas, mas nesse instante nem ao meu lado ela permanece.

Nunca tinha sentido uma dor tão profunda como a da solidão. A solidão dói! Dói quando você sente que está sozinho. Dói quando debaixo das cobertas naquele dia frio, a única coisa que te esquenta são as lágrimas que caem dos olhos. Dói quando você fala e a pessoa não escuta. Dói quando você se sente traído sem ter nenhum relacionamento. Dói ser sozinho.

Única coisa que consigo imaginar quando chego em casa é se ela me faria uma surpresa. Me recepcionasse com um abraço quente e apertado, me dissesse baixinho que estava feliz novamente por estar aqui. E eu choraria de novo. Porque eu estaria feliz de, pelo menos, sentir aquele calor perto de mim. Não me importa mais se ela apenas me vê e não me enxerga. O que me importa é que pelo menos aqui ela pode estar. E sempre esteve. Para mim, é o lugar que eu achava certo.

Mas eu estou errado. Na despedida, pude sentir que eu errava cegamente de olhos abertos. Errava por insistir no meu erro. No mesmo erro que me faz querer gritar. Gritar sozinho. Chorar. Olhar para baixo e conseguir pensar em alguma coisa que não seja aquela noite que eu não tiro da minha mente. Olhar para baixo e ver um jardim que eu mesmo plantei. Olhar para baixo, procurar seu rosto, olhar nos seus olhos e não ter vergonha. Vergonha do que sinto. Me penalizar por estar do lado errado.

Quando jogamos a moeda, para ela caiu cara. Para mim, caiu coração. Não consigo achar a moeda para jogar novamente. Devo tê-la vendido para alguém que passou e que eu tentei entregar meu coração.

Ainda posso sentir o medo me corroendo os dedos. Como o frio. Que começa quando estou deitado, lá nos dedos dos pés, sobe pela canela, me faz envergar para trás quando chega na espinha, me arrepiando inteiro, fazendo os braços tremerem e os pêlos do braço se levantarem. Chega à cabeça, primeiro na nuca como um sopro gelado nas costas, depois na boca que me faz tremer e então nos olhos que me faz chorar.

Eu não posso acreditar que meu coração está partido de novo. Sem motivos. Queria correr pela rua, andar sem ter para onde ir, encontrar as pessoas que eu amo, abraçar tão forte, sentir aquela fortaleza naquele instante. Sem ter medo de chorar, sem ter medo de parecer imbecil. Menor do que já sou. Pequeno.

Eu estou perdendo minha razão. Estou perdendo tudo que eu necessitava. Não consigo pensar. Apenas sinto que eu sou errado. Apenas sinto meu estômago doendo, meu coração batendo rapidamente, minhas mãos tremendo e eu escondendo meu olhos cheios de lágrimas. Não vou conseguir olhar para os olhos das pessoas. Vou olhar para baixo e continuar a procurar o jardim que deveria ter plantado enquanto permanecia no tempo de estiagem sem ela.

Não consigo entender uma só lembrança. As cenas na minha cabeça se embaralham. Ela deitada do meu lado, sorrindo. Quando vejo, tudo está vazio, não há mais nada aqui. Eu fico na janela pensando o que falar para ela, o que ela deveria saber, sendo que ela já sabe de tudo. Fico em silêncio, de costas, com os olhos cheios de lágrimas. Ela permanece na porta, encostada me olhando da forma que eu adoro. Me pergunta o que está acontecendo e eu respondo olhando para o jardim debaixo dos meus pés que não há nada. Ela fecha a porta, eu fixo meu olhar para o apartamento vizinho onde um casal se abraça feliz. E se beijam. Não há nada, e saio pela porta chorando. No caminho de volta, penso em tudo, mas me expresso pouco. Apenas sei dizer o que sei sentir. Falo e sei erroneamente.

Não quero ser mais a vítima e nem indicar um vilão. Não há mocinhos e bandidos. Não há eu e ela.

Dessa vez quero ser diferente. Quero esquecer esses sintomas que me machucam, que me fazem chorar. Quero tentar novamente um recomeço para mim. Todos já tiveram sua chance e a minha eu perdi com pessoas erradas. Não quero mais sentar na cama, sentir ainda ela aqui e começar a chorar. Levar comigo durante todo o dia aquela agonia que em um simples sinal de fraqueza, faz escorrer uma lágrima dos meus olhos. Não quero que as pessoas perguntem como eu estou e eu desabe nos ombros delas. Não quero que ninguém perceba o quanto sou fraco.

O meu coração que estava no chão, eu colocarei novamente aqui dentro. Ele pode continuar a bater por ela. Não me importo. E espero que ela não se importe. Apenas espero que ela não demore mais para voltar. Que eu não passe a noite novamente em claro pensando em coisas que eu abomino. Repulsa. Infelizmente o que acontece em Vegas, permanece em Vegas. Que eu não me sinta sozinho e precise de algumas horas sozinho caminhando sem rumo. Que eu não me permita sentir tantas coisas ao mesmo tempo. Amor, amizade e tesão. Sentimentos tão parecidos que eu me perco onde começa um e onde termina o outro.

Sentimentos que eu gostaria de tirar do meu peito e fazer com que eles não escorram dos meus olhos como lágrimas de dor. A dor que apenas eu posso sentir...

Eu devo tranqüilizá-la quanto a tudo. Estou errado, mas vou tentar acertar. Não vou tentar acertar em ser o cara certo para ela. Muito menos fazer com que ela não apenas me veja, mas me enxergue. Não nadarei mais contra a corrente. Deixarei a água bater nas minhas costas e me levar para algum lugar que não gostaria de estar.

Por enquanto eu choro. Todos os dias, logo cedo, sinto o frio na barriga ao imaginar que tudo está para recomeçar. Todos os dias penso que seria mais um dia sem ela. Todos os dias espero até às duas da tarde para vê-la na minha varanda me olhando e me acalmando. A gente feliz novamente. E isso me faz chorar. Saber que eu poderia ser feliz, mas não sou. Ainda não. Choro por saber que naquela noite, ela demorou um pouco a mais, pois tinha que se despedir de uma forma especial de outra pessoa. E eu fiquei esperando. Choro por lembrar da outra noite em que eu voltei desestruturado sem ninguém para me ajudar. Sem ninguém para me explicar porque tudo isso acontece comigo. Choro por saber que ela nunca será minha. E sim de outras pessoas.

Sim, eu choro. Sou homem e choro por um amor que eu não tenho mais direito. Nunca tive.

“Mas não se preocupe, você não me verá chorar mais!”"

(Texto produzido dia 23/06/2008)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Grito

"Eu escrevo.
Escrevo da mesma forma que os cantores cantam. Da mesma forma que os poetas encantam. Da mesma forma que atores interpretam.
Eu apenas escrevo meus medos. Medos que rejeito durante meu sono. Medos que eu gostaria de esquecer. Mas esqueço escrevendo o que não gostaria. Apenas escrevo para não sair pela rua gritando. Gritar é uma foram de se deixar levar pelo momento. É esquecer que o amanhã existe. Gritar é momento. Escrever é sentir, expressar e de uma forma auto punitiva, não cometer os mesmo erros.
Todo mundo erra. Eu erro, você erra. Todos nós erramos.
Não acho justo que as pessoas apenas acertem e que isso faça com que elas sejam melhores. O prêmio deveria ser para aqueles que erram. Se errar é humano, persistir no erro não é burrice.
Burro é aquele que não enxerga o que está óbvio. Burro é aquele que de certa forma esquece que seus medos se pautam em sentimentos que nunca se realizarão. Burro é aquele que ama.
Não amo, pois erro. E o amor tende a ser perfeito. Apenas para aquele que fala, pois quem sente sabe que ser perfeito é um dos pequenos defeitos da grande privação do amor.
Privar-se de amar é impossível. Ninguém diz para si mesmo: “Eu não vou amar!” e sai pela rua livre de qualquer tipo de colpo di fulmine. Ninguém pode falar que alguém nunca o tocou tão profundamente que fez com que ficasse noites em claro pensando no que poderia acontecer.
Privar-se de amar é uma forma de defesa para quem foi privado. Para quem amou e não foi correspondido. Para aquele que o amor apenas não saiu do papel. Dos sonhos.
Amar aquela pessoa que não te ama é trágico. É cruel. Para os dois. Para um. Para mim.
Não vou dizer que faça o que fizer, aconteça o que acontecer, eu vou fazer com que ela fique comigo, que essa pessoa me olhe de forma diferente. Já tive a oportunidade e não aproveitei. Agarrei com tanta força, fiz o que tinha que ser feito. Até hoje, aquele cheiro que passa a noite comigo, que eu segurei em meus braços com calor, me atormenta. Me dá medo.
Olhos nos olhos. Corpo no corpo. Mão na mão. Boca na boca.
E pensar que antes de tudo isso, eu era apenas um amigo. O amigo que ficaria ao lado toda hora que precisasse. O ombro que agüentaria as lágrimas que tinham o peso de uma bala de canhão no estômago. Chorando por outro. E eu me segurando por ela.
Após vários momentos juntos, pude perceber o quão valioso poderia ser minhas lágrimas que o espelho refletia e que não pareceriam vindas de mim. Lágrimas de dor.
A dor se transformou em felicidade quando eu senti pela primeira vez o calor daquele beijo tímido. Tímido de medo de me machucar e eu saber toda a verdade.
Lágrimas que se converteriam da dor para a alegria de sentir que pela primeira vez e talvez pela última, ela estaria comigo. Apenas uma vez pude sentir todas as emoções juntas, em um momento que não acreditaria que poderia usufruir. Eu estava cego e era cedo.
Despedimos-nos logo cedo e ela foi embora. Nossa relação nunca mais foi a mesma. Acabou o respeito, a sinceridade, a amizade. Acabou tudo aquilo que eu mais esperava, que eu mais lutava. Acabou.
Acabou da mesma forma que meus olhos piscavam ao ver uma foto e mais uma lágrima caía. Caíam várias. De medo, de receio, de punição.
A verdade dela era simples. Ela amava outro. E tudo que aconteceu entre a gente era apenas uma falha, uma pane no sistema que eu compreendia. Ela se rendeu a tentação e eu me rendi ao sentimento. Os dois rendidos no fim do caminho.
Ela privada pelo meu amor e eu privado de amá-la. Os dois com medo de machucar e esquecidos que a vida faz-se com verdadeiros erros.
Erros que se erram com o coração podem ter perdão.
Mas não tive. Pois não me privei de um amor que já sabia que não seria meu. Sucumbi no meu erro e fui burro. Esse tipo de burrice nem Deus perdoa. Errar por amar demais é cair no vale de medos que acompanham a gente até o próximo relacionamento. Até você achar outra pessoa e se entregar totalmente.
Porém comigo não foi assim. Relacionamentos entram, saem da minha vida e não consigo esquecer aquelas horas que passei junto dela. Aquelas horas em que pude sentir que eu era vivo. Vivia para amar e não para sentir medo. Mas foi apenas aquele instante. Um pequeno instante.
Mas me decidi. Não amo mais e assim não erro. Sucumbo ainda na escuridão dos meus medos. Cansei disso tudo. Cansei das mentiras e das verdades.
Assim, eu escrevo para gritar. Esse é meu grito. Como o grito, é passageiro. O que escrevo é passageiro e apenas serve para que eu me lembre que meus erros, não desejo a ninguém.
Escrever e gritar sobre amor não é coisa fácil. Muitas pessoas escrevem, cantam, poetam e interpretam de formas diferentes o que é o amor.
Mas errar... apenas eu sei o que é. Pois as pessoas são perfeitas. E eu não."
(Texto produzido para a matéria de Técnica Redacional
em Jornalismo do 3º ano no ano de 2008)

domingo, 8 de junho de 2008

Do Sol

"- Sabe, nunca tinha reparado como o sol deixa todas as nuvens mais coloridas de vermelho e laranja nesses fins de tarde.
Disse aquele velho cliente do bar, contentando-se com a semi-presença de uma jovem loira de olhos claros na mesa ao lado. Semi-presença pois a garota estava totalmente de costas para o velho que falava sozinho. Ele tinha cabelo ralo e grisalho, olhos escuros, usava óculos, calça com tons de bege e marrom desbotados com o tempo, e camisa amarela bem alinhada, dissonante da calça por ser aparentemente nova.
- Aliás, nunca tinha reparado como as coisas são tão passageiras. Uma pessoa que você imagina conhecer por alguns anos de vida, passa pela gente, vai embora e nem diz um tchau. Da mesma forma que você imaginava conhecer tantas coisas da vida, ainda mais eu que já passei maus bocados, agora receio dizer que não sei direito o que as pessoas são capazes de fazer. Como o sol... Tão passageiro...
A garota, imóvel, permanecia rente à cadeira, e não demonstrava nenhum tipo de reação à fala do senhor, que continuava seu monólogo:
- Eu devo ter quase triplo de sua idade. Não sei se deveria contar, mas já que estou nessa conversa, vou até o fim. – respirou, levou até a boca um copo de cerveja, acendeu um cigarro e continuou – Pode não ser do meu interesse, mas absolutamente devo dizer que seus amigos a deixaram esperando. Amizade é um negócio que mexe demais com a gente. Na sua idade, eu fazia uma faculdade que me ocupava todo o tempo. Nessa faculdade, encontrei amores e amigos... Amigos. – suspirou e levou rapidamente mais um gole da cerveja a boca para não perder o raciocínio – Um deles eu me lembro muito bem que me marcou.
O sol que desaparecia no horizonte entre as nuvens, deixando tudo mais escuro, lentamente seduzia o olhar do velho, como se fosse um apoio para que não perdesse as memórias que ali depositaria para qualquer um que estivesse ouvindo. A garota não se movia, permanecia inerte, quase com uma posição que indicava medo do senhor que nenhum mal poderia fazer. Ele apenas tinha um costume de conversar com quem lhe aparecesse.
- Foi esse que, logo no início, olhei bem para o rosto e tive a certeza que se não fosse amigo dele, eu o odiaria. E realmente, foi o que aconteceu... - encheu o copo, segurou a garrafa na mão e pediu mais uma cerveja – Não! Não o odiei. Tornamos-nos amigos. Talvez não aquela amizade que rendesse horas a fio de conversa, mas minutos pequenos de debate que se travavam. Ele tinha idéias parecidas com as minhas, mas muitas vezes divergentes até demais. Como uma pessoa poderia gostar de música pop e ao mesmo tempo cultuar o blues, o rock, chegando ao extremo da MPB? Eclético seletivo, como ele dizia.
A garçonete trouxe mais uma garrafa, foi saindo de perto do velho, anotando alguma coisa em um bloco de papel. O velho trocou de posição das pernas e puxou a cadeira para mais perto da moça, e como se fosse contar um segredo, começou a falar bem baixinho.
- Eu tinha medo, no início, de conversar com ele. Pessoa de poucas palavras, idéias que se concentravam tanto na fortaleza do capitalismo, quanto na rebeldia comunista. Na realidade um turbilhão de raciocínio. – bebeu mais um pouco de cerveja - Tinha nascido longe daqui. Era da capital. Mudou-se ainda quando criança para o interior. Mas esses detalhes não me valem muito. O que vale na realidade era o perfil dele. Na realidade, nem mesmo isso. Me é importante tudo que eu pude ver que ele fazia. Como ele mesmo ponderava: “O que se analisa nas pessoas não é o que ela é ou aparenta ser, e sim o que ela faz”.
A moça, ainda de costas, relaxava e se aproximava do velho, com uma atitude aparente de quem tinha começado a se interessar pela fala do senhor. Ela largava em cima da mesa o celular que havia bem seguro nas mãos e um lenço de papel cheio do batom rosa que delineava os pequenos lábios ainda escondidos pela sombra da árvore.
- Quantas vezes eu passei na frente da sua casa na época, e encontrava-o sentado na varanda, com um copo de suco ou vodka na mão, vendo o movimento. Aliás, de todas as janelas de sua casa. Era aficionado em janelas, no que elas representavam. Dizia que ficava ali na janela para fugir às vezes do que sentia por dentro. Quase em uma metáfora viva, entre casa e coração.
O velho olhava em volta, analisava a rua cheia de carros e em nenhum momento direcionava seu olhar para a moça que permanecia ali do seu lado, de costas para ele, mas com posição atenta aos relatos. Entre uma fala e outra, a moça jogava os cabelos para trás, em um movimento comum, mas que delatava seu interesse nas memórias.
- E que coração. Como sofria aquele coração! Sofria por amor. Muitos amores que sequer saíram do papel. Ele guardava tudo em folhas de caderno, como um diário esporádico do que sentia secretamente. Um dia peguei um desses cadernos e li vários textos que ele escreveu. Alguns textos me assustavam por conter um lado que poucos tinham visto dele. Aliás, vários lados de uma pessoa que amou platonicamente, carnalmente e conscientemente.
Levou mais um copo de cerveja na boca, colocou o copo meio vazio na mesa e continuou: - Ainda mais quando ele se fazia apaixonar. Era esperto. Sabia que com o coração não se brinca, mas tinha convicção que mais vale um pássaro pequeno na mão que um grande voando. Era tão esperto que às vezes não se compreendia o que ele queria dizer. Falava apenas quando convicto do que sabia e sentia, mas seu silêncio dizia muito.
O sol, que já não iluminava tanto as ruas, cedia lugar para as grandes nuvens vermelhas que se encarregavam de deixar o fim de tarde mais claro. Entre um copo e outro, o velho dedicava, minuciosamente, ao relato do amigo.
- Ironia. Era mestre em fazer-se irônico. Por natureza já o fazia, mas quando queria, chegava ao sarcasmo. Positivo ou não, era temido por pessoas que não o conheciam direito. Temiam aquele olhar julgador que, por unanimidade, era conhecido por analítico. Analisava tudo. Deixava passar algumas coisas que não considerava importante, e para ele, pior que o ódio, era a sua indiferença.
O celular da moça começava a tocar e ela não fazia questão de atender. Não se movia em direção ao pequeno aparelho, e ficava esperando a fala do velho. Este continuava seu monólogo, sem deixar-se interromper pelo barulho que o telefone fazia:
- Se ele tinha família? Sentia muita falta de casa apesar de morarem em uma cidade aqui perto. Não falava muito deles para que não se lembrasse toda a vez da saudade que sentia. Mas sabia que eles estariam o apoiando esteja onde estivesse. E seus planos para o futuro eram simples: apenas queria um casal de gêmeos. Sempre foi seu sonho. Se não me engano, conseguiu realiza-lo, se casando e sendo feliz ao lado da família que construiu. Tinha o desejo também de adotar uma criança. Já esse sonho, não conseguiu realizar...
A moça, em um sinal pequeno de afirmação, sacudiu a cabeça, cobrindo mais uma vez a face dos raios enfraquecidos do sol. Ela levou a mão no rosto e permaneceu assim por alguns instantes. O velho, que até então não tinha observado as reações da jovem, parou sua fala, olhou os seus cabelos loiros, e analisou a mesa em que ela estava com algumas garrafas de cerveja e um copo ainda cheio.
- Tinha uma coisa que deixava todos com que ele convivia nervosos: mudança repentina de humor. Nunca vi uma pessoa que muda tanto de humor como ele. De uma hora para outra, passava de um clima pacífico, para uma forma de tratar quase de guerra. Uma metamorfose, como apelidavam. Deve ser pelo fato dele se estressar com as duas faculdades que ele fazia na época que estudávamos. Estudante da arte do uso da palavra duas vezes. Letras e jornalismo: a palavra como uma forma de escrita e desenvolvimento, e outra como forma de expressão social. Mais do que isso talvez, queria expressar a sua visão.
Quando tomava sua cerveja, em uma parada, o velho notou um suspiro diferente da jovem ao lado. Um suspiro calado, abafado pelas mãos no rosto que faziam com que a maquiagem, antes imperceptível por causa dos longos cabelos, escorresse pelo braço da moça. Ele assustado, tentava retomar seu então monólogo, que de um momento para outro, havia afetado a jovem de alguma forma.
- Eu me empolguei tanto com a minha fala, que esqueci de dizer o porquê me refiro a esse velho amigo desta forma. Uma das várias lições que aprendi com ele ao longo dos anos foi que amigos são amigos. Para todas as horas, em todos os lugares. Amigos que conquistamos continuam sempre guardados em algum lugar no peito e nas lembranças. Ele exigia muito das amizades dele... – levou o último copo de cerveja à boca, respirou fundo e continuou – Talvez não exigisse demais, mas esperava deles. E isso foi com o passar do tempo se acentuando, até que todos a sua volta começaram a exigir a mesma forma de demonstrar a amizade.
O sol já não pintava as nuvens de cores do fogo. A lua começava a aparecer nitidamente pela imensidão escura, brilhando de forma tímida, mas que fazia com que o céu, sem a presença de formas estelares, fosse preenchido aos poucos, para compensar a ausência solar.
- Assim foi durante todos os anos de convivência. Tornamo-nos uma família... nós dois mais os outros que sempre estiveram a nossa volta. Trabalhamos juntos em um jornal de uma cidade grande aqui para esses cantos, e estamos agora dando aulas para o curso que nos formou, afinal o ensino sempre esteve impregnado no sangue dele, mesmo sendo uma pessoa sem paciência às vezes.
A moça ameaçou virar-se de frente e encarar o senhor, mas seu pequeno gesto apenas fez com que ela se sentasse mais próxima dele. O velho, por sua vez, ajeitou-se na cadeira desconfortável e pediu a conta para o funcionário mais próximo do lugar.
- De uns meses para cá, ele desapareceu. Ouvi falar que ficou doente, mas duvido muito. Vaso ruim não quebra! Liguei, procurei... Até minha esposa entrou na procura. E nada. Largou tudo para trás e desapareceu! Sem dizer uma palavra, sem dizer um tchau. Incabível...! Sinto falta das nossas conversas aqui nesse mesmo bar, lugar preferido dele, sempre analisando o pôr-do-sol... E essa falta que sinto do meu amigo, se reverteu em angústia, até chegar ao ponto de me decepcionar... Realmente, como o sol que vai pelo horizonte e não volta...
Em um movimento súbito, durante a retomada de fôlego do velho, a moça levantou-se e sentou de frente para o senhor, interrompendo sua fala. Ele, impressionado com os olhos verdes escuros lacrimejados da moça, e com o rosto manchado de maquiagem, resistiu e olhou fundo naquele olhar que reconheceria mais tarde.
- Eu não queria interromper as memórias do senhor – disse ela bem baixo, com uma voz de cansaço – mas imagino que a pessoa que lhe causou todo essa desencadeamento de lembranças é a mesma pessoa que tento não me lembrar...
- Você está falando do...
- Sim... Dele mesmo! – retrucou a jovem se apoiando no braço do velho desconhecido – Após três anos da minha viagem definitiva para a Itália, que era um sonho antigo da família, voltei ontem da minha estadia por saber que a pessoa de quem o senhor tanto sente falta estava mal...
- Meu Deus! Mas como ele está? – disse o velho ressabiado e com os olhos escuros fixos nos lábios da jovem... – Seu rosto! Ele é familiar...
- Fico feliz por suas memórias... – olhando para o chão, procurando força para olhar nos olhos do velho, ela continuou – Um pouco antes do senhor chegar e começar a contar toda história, eu estava aqui há algum tempo lamentando-me e procurando motivos para levantar meu rosto...
A lua já clara no céu iluminava a rua junto com os postes que faziam contraste com as poucas janelas do prédio à frente que estavam abertas. Junto com a lua, várias estrelas pareciam surgir repentinamente, uma a uma, como um sinal de luz na escuridão.
- Agradeço, pois o senhor me fez enxergar que não devo chorar, mas sim me orgulhar...
- Não entendo nada do que você me diz. O que este grande amigo tem a ver com sua história, moça?
- Seu velho amigo era meu velho pai... Ele morreu há alguns dias e não pude vir antes para seu enterro. Quando cheguei, apenas seu túmulo e silêncio reinavam dentro de mim. – o espanto nos olhos do velho era visível, porém a moça continuou – Mas foi bom, pois ele sempre desejou que ninguém sofresse por ele, e que seu enterro não fosse muito noticiado...
- Mas...
- Eu agradeço profundamente o que você fez por mim hoje. – novamente interrompeu a moça, segurando com força as mãos suadas do velho – Vejo nitidamente agora que o maior desejo do meu pai se realizou... Ser lembrado pelas pessoas que ele mantinha a sua volta como alguém que vivia para todos estes, e para construir o próprio perfil de uma pessoa que apenas queria que o vermelho do céu, criado pelo sol, amanhã voltasse. Um perfil de um ser humano comum, porém especial. Para mim e para todos que o amavam.
A moça se levantou, beijou o velho no rosto e foi embora. O senhor inerte, com os olhos lacrimejados, forçava os lábios segurando para que a primeira lágrima não escorresse. Após alguns instantes, olhou para o céu estrelado, e a lua cheia que brilhava cintilante fez-se refletir na lágrima que escorria. Na boca, exibia-se um pequeno sorriso.
- O sol amanhã vai voltar..."
(Texto produzido para a matéria de Jornalismo Impresso
no ano de 2008 para definir a questão: "Quem sou eu?")