Finalmente criava coragem de expor o que sentia, o que estava nas suas costas. O peso de uma difícil tarefa em ser o que não queria. Em ser o que nunca chegou a ser. Isso doía, os olhos no horizonte denunciavam a dor junto com as lágrimas que prometera nunca mais chorar. E não chorava. Elas eram contidas nos pequenos olhos que apenas esperavam uma segunda chance para ser feliz. Esperar era o suficiente, mas agora não era bom o bastante para saciar-lo.
A folha em branco dentro da gaveta entre outras, um simples papel que esperava também. Esperava ser pega e usufruída. Delicadamente, como quem pegasse um grande objeto de valor, ele colocava a folha que insistia em voar devido ao ventilador que estava ligado. O calor tomava o ar e fazia dele mais insuportável para quem esconde tanto dentro de um pequeno lugar: o coração. Ao mesmo tempo em que parecia querer explodir com as palavras, com os adjetivos, apenas queria ser um verbo, apenas que sentir, ser sentido, ouvir e ser percebido.
O que escrever afinal para alguém que já sabe de todos os verbos, de toda a intransitividade compatível entre amigos. Amigo. Palavra que sempre dói, como uma ferida que cicatriza dolorosamente no tempo. Machucado que foi aberto e custa a melhorar, porque sangra continuamente diante da imagem do espelho que grita: “amigo”.
As palavras demorariam para sair. Lentamente, uma a uma iam compondo aquela velha folha amarela do caderno de capa dura com um desenho de um mar e um sol. O tal paraíso que todos procuram, mas que ninguém consegue chegar. Não que ninguém consiga nadar nas águas azuis e cristalinas desse imenso mar refrescante que é a felicidade. Todos podem, mas poucos têm a oportunidade de ver o sol brilhar tão nitidamente que não lhes faça queimar a pele branca e que não cegue com a luz forte nos olhos claros.
A caneta mal posicionada entre os dedos acostumados com trabalhos duros, repetitivos, mal cabia entre a robustez dos traços que deviam ser fortes, porém leves. O pequeno risco azul traçava aos poucos o caminho suave que as palavras deviam ter, longe de toda aquela impressão dura, vazia e fria dos dedos, apenas seguindo o fluxo que o coração e a mente ensinavam a procurar. A leveza de sentimentos pesados é o que ele procurava. Seria pedir demais, tamanha contradição. Mas de forma simples, escrevia o que os olhos não poderiam mais enxergar, afinal os olhos agora de nada lhe servia. O que lhe abastece vem de dentro, detrás das pupilas dilatadas em meio às lágrimas.
Seria aquela a última de todas as cartas que ele enviaria para aquela pessoa. Já havia pensado no que escrever e previu que seria a única ser enviada naquele fim de ano. E seria essa carta, como tradição, já que ano passado ele redigiu outra que lhe tocou tão fundo que nem se recorda mais o que tenha escrito. Ainda bem, pensa ele em meio à vergonha que lhe toma os dedos que largam a caneta e instantaneamente seguram a cabeça. Os olhos fixos na folha se perdem em meio a tanta informação. E o que lhe confundia não é algo que está escrito. O que lhe confunde é o vazio, o branco.
Deixar de escrever, de fazer algo, abrir mão de muitas coisas já virou rotina para ele. Aos poucos, ao longo de dois anos, ele se transformara em outra pessoa, constantemente. Quando teve que cair em si diante da realidade: não adiantava se transformar, esconder suas dores, seus desejos e colocar um grande sorriso no rosto. Nenhuma maquiagem o faria ser o que ele realmente desejava ser. Erro, pecado. Sabia que faria tudo para ser feliz. Mas não sabia até que ponto agüentaria ir por uma causa perdida. Uma guerra que não lutaria mais, não por não haver forças, mas por não ter prêmio.
E o único prêmio que ele queria era ser feliz. A tão eterna busca pelo cálice dourado, o trevo de quatro folhas, a felicidade. Se contentaria, anos depois, em ser aquele mesmo ser frio, forte, uma barreira que apenas os mais fortes poderiam sobreviver. “Feliz” foi a única coisa que tinha escrito. Um dia lhe disseram que a felicidade é nada mais do que uma saúde perfeita e uma memória fraca. Boa saúde para que fosse firme, não perdesse mais noites de sono e os vícios fossem embora. Memória frágil para poder esquecer aqueles dias de sol, de chuva, as noites, as risadas, os abraços, os olhos, as mãos inquietas.
As mesmas mãos que agora permanecem inertes. Uma sobre o topo da folha e outra entre os cabelos castanho-claros. Aos poucos, as lágrimas lhe tomavam todo o coração, derramando uma maré azul-escura sobre os sonhos, sobre o dia em que se encontraram pela primeira vez, e o sol bem frágil em uma semana de inverno, deixando com que o frio faça sua parte pela Terra.
O imenso planeta, o diferente falar, os diversos verbos. Onde estaria aquela pessoa que ele poderia abraçar tão forte para que pudesse sentir todo o calor que o verão não é capaz de exalar? Onde estaria, mais uma vez, a outra parte da moeda da sorte que se quebrou sem ser notada nas caminhadas diante o jardim verde com os coqueiros? O prazer de se sentir protegido finalmente por algo maior que todos na Terra.
Com os olhos fechados e com a música ao fundo, ele pedia para que finalmente sua cegueira fosse embora. Abriu os olhos e permanecia ali, parado, com aquela imensidão branca diante de si. Sua cegueira, mesmo com os olhos vivos, insistia. Toda aquela brancura seria o céu? E ele um anjo, que não poderia amar, sem sentir vãos sentimentos humanos? Mas ele era humano, era um simples humano. Com erros, pecados e perdão. O perdão é dos homens.
As mãos encontravam novamente a caneta que insistia em escrever mais, sem saber como. Como, seria a chave para o recomeço. Antes era “o quê”, “por que”, “onde”. Agora era o “como”. Somente isso. Como recomeçar? Ele apenas queria amar sem ser de alguma forma impedido. E isso chegava terrivelmente ao fim. Como os outros finais em que o bom e o mau estavam juntos. Onde tudo parecia perfeito, uma vez que perfeição não existe para um simples mortal.
A caneta terminava sua parte, as palavras ali escritas estavam postas. Estava tudo bem claro. Finalmente, ele se afastava da mesa lentamente com os olhos sem reação, admirando o que tinha feito. As mãos, sobre as pernas, as seguravam de forma inconfundível: estava nervoso em escrever. O que escrevera era pouco diante do que queria falar. Mas não queria mais redigir nem conversar. Seria o fim definitivo para todos aqueles que deixam para trás seus problemas. Apenas descarregou no papel o peso que carregava.
“Feliz Natal”. Tinha escrito simplesmente. Tinha tirado de suas costas a felicidade e posto a sua frente. Sem desculpas para um possível final feliz, terminava como tinha começado: tremendo, palavra por palavra, passo por passo, sentimento por sentimento. Tirava de si mesmo a necessidade incessante de se fazer compreender, de ser aquilo que não queria mais ser.
O tal paraíso, com águas claras e o sol aquecedor, ainda não tinha achado, mas o sorriso singelo no canto dos lábios denunciava a satisfação de um desejo. Tinha encontrado na folha em branco o nada que veio e lhe tirou o sossego. Não teria que mentir mais sobre o que era felicidade. Um dia, doa a quem doer, ela chegaria devagar como a caneta que tocou lentamente a folha em branco, e, nela, lhe deixou aqueles escritos. Uma última carta, um último momento. A caneta que sente a folha aos poucos e que deixa finalmente uma marca. A marca de cada pessoa na vida de outras. A marca do que foi a felicidade na vasta brancura de uma simples folha de papel. Vazia."