domingo, 8 de junho de 2008

Do Sol

"- Sabe, nunca tinha reparado como o sol deixa todas as nuvens mais coloridas de vermelho e laranja nesses fins de tarde.
Disse aquele velho cliente do bar, contentando-se com a semi-presença de uma jovem loira de olhos claros na mesa ao lado. Semi-presença pois a garota estava totalmente de costas para o velho que falava sozinho. Ele tinha cabelo ralo e grisalho, olhos escuros, usava óculos, calça com tons de bege e marrom desbotados com o tempo, e camisa amarela bem alinhada, dissonante da calça por ser aparentemente nova.
- Aliás, nunca tinha reparado como as coisas são tão passageiras. Uma pessoa que você imagina conhecer por alguns anos de vida, passa pela gente, vai embora e nem diz um tchau. Da mesma forma que você imaginava conhecer tantas coisas da vida, ainda mais eu que já passei maus bocados, agora receio dizer que não sei direito o que as pessoas são capazes de fazer. Como o sol... Tão passageiro...
A garota, imóvel, permanecia rente à cadeira, e não demonstrava nenhum tipo de reação à fala do senhor, que continuava seu monólogo:
- Eu devo ter quase triplo de sua idade. Não sei se deveria contar, mas já que estou nessa conversa, vou até o fim. – respirou, levou até a boca um copo de cerveja, acendeu um cigarro e continuou – Pode não ser do meu interesse, mas absolutamente devo dizer que seus amigos a deixaram esperando. Amizade é um negócio que mexe demais com a gente. Na sua idade, eu fazia uma faculdade que me ocupava todo o tempo. Nessa faculdade, encontrei amores e amigos... Amigos. – suspirou e levou rapidamente mais um gole da cerveja a boca para não perder o raciocínio – Um deles eu me lembro muito bem que me marcou.
O sol que desaparecia no horizonte entre as nuvens, deixando tudo mais escuro, lentamente seduzia o olhar do velho, como se fosse um apoio para que não perdesse as memórias que ali depositaria para qualquer um que estivesse ouvindo. A garota não se movia, permanecia inerte, quase com uma posição que indicava medo do senhor que nenhum mal poderia fazer. Ele apenas tinha um costume de conversar com quem lhe aparecesse.
- Foi esse que, logo no início, olhei bem para o rosto e tive a certeza que se não fosse amigo dele, eu o odiaria. E realmente, foi o que aconteceu... - encheu o copo, segurou a garrafa na mão e pediu mais uma cerveja – Não! Não o odiei. Tornamos-nos amigos. Talvez não aquela amizade que rendesse horas a fio de conversa, mas minutos pequenos de debate que se travavam. Ele tinha idéias parecidas com as minhas, mas muitas vezes divergentes até demais. Como uma pessoa poderia gostar de música pop e ao mesmo tempo cultuar o blues, o rock, chegando ao extremo da MPB? Eclético seletivo, como ele dizia.
A garçonete trouxe mais uma garrafa, foi saindo de perto do velho, anotando alguma coisa em um bloco de papel. O velho trocou de posição das pernas e puxou a cadeira para mais perto da moça, e como se fosse contar um segredo, começou a falar bem baixinho.
- Eu tinha medo, no início, de conversar com ele. Pessoa de poucas palavras, idéias que se concentravam tanto na fortaleza do capitalismo, quanto na rebeldia comunista. Na realidade um turbilhão de raciocínio. – bebeu mais um pouco de cerveja - Tinha nascido longe daqui. Era da capital. Mudou-se ainda quando criança para o interior. Mas esses detalhes não me valem muito. O que vale na realidade era o perfil dele. Na realidade, nem mesmo isso. Me é importante tudo que eu pude ver que ele fazia. Como ele mesmo ponderava: “O que se analisa nas pessoas não é o que ela é ou aparenta ser, e sim o que ela faz”.
A moça, ainda de costas, relaxava e se aproximava do velho, com uma atitude aparente de quem tinha começado a se interessar pela fala do senhor. Ela largava em cima da mesa o celular que havia bem seguro nas mãos e um lenço de papel cheio do batom rosa que delineava os pequenos lábios ainda escondidos pela sombra da árvore.
- Quantas vezes eu passei na frente da sua casa na época, e encontrava-o sentado na varanda, com um copo de suco ou vodka na mão, vendo o movimento. Aliás, de todas as janelas de sua casa. Era aficionado em janelas, no que elas representavam. Dizia que ficava ali na janela para fugir às vezes do que sentia por dentro. Quase em uma metáfora viva, entre casa e coração.
O velho olhava em volta, analisava a rua cheia de carros e em nenhum momento direcionava seu olhar para a moça que permanecia ali do seu lado, de costas para ele, mas com posição atenta aos relatos. Entre uma fala e outra, a moça jogava os cabelos para trás, em um movimento comum, mas que delatava seu interesse nas memórias.
- E que coração. Como sofria aquele coração! Sofria por amor. Muitos amores que sequer saíram do papel. Ele guardava tudo em folhas de caderno, como um diário esporádico do que sentia secretamente. Um dia peguei um desses cadernos e li vários textos que ele escreveu. Alguns textos me assustavam por conter um lado que poucos tinham visto dele. Aliás, vários lados de uma pessoa que amou platonicamente, carnalmente e conscientemente.
Levou mais um copo de cerveja na boca, colocou o copo meio vazio na mesa e continuou: - Ainda mais quando ele se fazia apaixonar. Era esperto. Sabia que com o coração não se brinca, mas tinha convicção que mais vale um pássaro pequeno na mão que um grande voando. Era tão esperto que às vezes não se compreendia o que ele queria dizer. Falava apenas quando convicto do que sabia e sentia, mas seu silêncio dizia muito.
O sol, que já não iluminava tanto as ruas, cedia lugar para as grandes nuvens vermelhas que se encarregavam de deixar o fim de tarde mais claro. Entre um copo e outro, o velho dedicava, minuciosamente, ao relato do amigo.
- Ironia. Era mestre em fazer-se irônico. Por natureza já o fazia, mas quando queria, chegava ao sarcasmo. Positivo ou não, era temido por pessoas que não o conheciam direito. Temiam aquele olhar julgador que, por unanimidade, era conhecido por analítico. Analisava tudo. Deixava passar algumas coisas que não considerava importante, e para ele, pior que o ódio, era a sua indiferença.
O celular da moça começava a tocar e ela não fazia questão de atender. Não se movia em direção ao pequeno aparelho, e ficava esperando a fala do velho. Este continuava seu monólogo, sem deixar-se interromper pelo barulho que o telefone fazia:
- Se ele tinha família? Sentia muita falta de casa apesar de morarem em uma cidade aqui perto. Não falava muito deles para que não se lembrasse toda a vez da saudade que sentia. Mas sabia que eles estariam o apoiando esteja onde estivesse. E seus planos para o futuro eram simples: apenas queria um casal de gêmeos. Sempre foi seu sonho. Se não me engano, conseguiu realiza-lo, se casando e sendo feliz ao lado da família que construiu. Tinha o desejo também de adotar uma criança. Já esse sonho, não conseguiu realizar...
A moça, em um sinal pequeno de afirmação, sacudiu a cabeça, cobrindo mais uma vez a face dos raios enfraquecidos do sol. Ela levou a mão no rosto e permaneceu assim por alguns instantes. O velho, que até então não tinha observado as reações da jovem, parou sua fala, olhou os seus cabelos loiros, e analisou a mesa em que ela estava com algumas garrafas de cerveja e um copo ainda cheio.
- Tinha uma coisa que deixava todos com que ele convivia nervosos: mudança repentina de humor. Nunca vi uma pessoa que muda tanto de humor como ele. De uma hora para outra, passava de um clima pacífico, para uma forma de tratar quase de guerra. Uma metamorfose, como apelidavam. Deve ser pelo fato dele se estressar com as duas faculdades que ele fazia na época que estudávamos. Estudante da arte do uso da palavra duas vezes. Letras e jornalismo: a palavra como uma forma de escrita e desenvolvimento, e outra como forma de expressão social. Mais do que isso talvez, queria expressar a sua visão.
Quando tomava sua cerveja, em uma parada, o velho notou um suspiro diferente da jovem ao lado. Um suspiro calado, abafado pelas mãos no rosto que faziam com que a maquiagem, antes imperceptível por causa dos longos cabelos, escorresse pelo braço da moça. Ele assustado, tentava retomar seu então monólogo, que de um momento para outro, havia afetado a jovem de alguma forma.
- Eu me empolguei tanto com a minha fala, que esqueci de dizer o porquê me refiro a esse velho amigo desta forma. Uma das várias lições que aprendi com ele ao longo dos anos foi que amigos são amigos. Para todas as horas, em todos os lugares. Amigos que conquistamos continuam sempre guardados em algum lugar no peito e nas lembranças. Ele exigia muito das amizades dele... – levou o último copo de cerveja à boca, respirou fundo e continuou – Talvez não exigisse demais, mas esperava deles. E isso foi com o passar do tempo se acentuando, até que todos a sua volta começaram a exigir a mesma forma de demonstrar a amizade.
O sol já não pintava as nuvens de cores do fogo. A lua começava a aparecer nitidamente pela imensidão escura, brilhando de forma tímida, mas que fazia com que o céu, sem a presença de formas estelares, fosse preenchido aos poucos, para compensar a ausência solar.
- Assim foi durante todos os anos de convivência. Tornamo-nos uma família... nós dois mais os outros que sempre estiveram a nossa volta. Trabalhamos juntos em um jornal de uma cidade grande aqui para esses cantos, e estamos agora dando aulas para o curso que nos formou, afinal o ensino sempre esteve impregnado no sangue dele, mesmo sendo uma pessoa sem paciência às vezes.
A moça ameaçou virar-se de frente e encarar o senhor, mas seu pequeno gesto apenas fez com que ela se sentasse mais próxima dele. O velho, por sua vez, ajeitou-se na cadeira desconfortável e pediu a conta para o funcionário mais próximo do lugar.
- De uns meses para cá, ele desapareceu. Ouvi falar que ficou doente, mas duvido muito. Vaso ruim não quebra! Liguei, procurei... Até minha esposa entrou na procura. E nada. Largou tudo para trás e desapareceu! Sem dizer uma palavra, sem dizer um tchau. Incabível...! Sinto falta das nossas conversas aqui nesse mesmo bar, lugar preferido dele, sempre analisando o pôr-do-sol... E essa falta que sinto do meu amigo, se reverteu em angústia, até chegar ao ponto de me decepcionar... Realmente, como o sol que vai pelo horizonte e não volta...
Em um movimento súbito, durante a retomada de fôlego do velho, a moça levantou-se e sentou de frente para o senhor, interrompendo sua fala. Ele, impressionado com os olhos verdes escuros lacrimejados da moça, e com o rosto manchado de maquiagem, resistiu e olhou fundo naquele olhar que reconheceria mais tarde.
- Eu não queria interromper as memórias do senhor – disse ela bem baixo, com uma voz de cansaço – mas imagino que a pessoa que lhe causou todo essa desencadeamento de lembranças é a mesma pessoa que tento não me lembrar...
- Você está falando do...
- Sim... Dele mesmo! – retrucou a jovem se apoiando no braço do velho desconhecido – Após três anos da minha viagem definitiva para a Itália, que era um sonho antigo da família, voltei ontem da minha estadia por saber que a pessoa de quem o senhor tanto sente falta estava mal...
- Meu Deus! Mas como ele está? – disse o velho ressabiado e com os olhos escuros fixos nos lábios da jovem... – Seu rosto! Ele é familiar...
- Fico feliz por suas memórias... – olhando para o chão, procurando força para olhar nos olhos do velho, ela continuou – Um pouco antes do senhor chegar e começar a contar toda história, eu estava aqui há algum tempo lamentando-me e procurando motivos para levantar meu rosto...
A lua já clara no céu iluminava a rua junto com os postes que faziam contraste com as poucas janelas do prédio à frente que estavam abertas. Junto com a lua, várias estrelas pareciam surgir repentinamente, uma a uma, como um sinal de luz na escuridão.
- Agradeço, pois o senhor me fez enxergar que não devo chorar, mas sim me orgulhar...
- Não entendo nada do que você me diz. O que este grande amigo tem a ver com sua história, moça?
- Seu velho amigo era meu velho pai... Ele morreu há alguns dias e não pude vir antes para seu enterro. Quando cheguei, apenas seu túmulo e silêncio reinavam dentro de mim. – o espanto nos olhos do velho era visível, porém a moça continuou – Mas foi bom, pois ele sempre desejou que ninguém sofresse por ele, e que seu enterro não fosse muito noticiado...
- Mas...
- Eu agradeço profundamente o que você fez por mim hoje. – novamente interrompeu a moça, segurando com força as mãos suadas do velho – Vejo nitidamente agora que o maior desejo do meu pai se realizou... Ser lembrado pelas pessoas que ele mantinha a sua volta como alguém que vivia para todos estes, e para construir o próprio perfil de uma pessoa que apenas queria que o vermelho do céu, criado pelo sol, amanhã voltasse. Um perfil de um ser humano comum, porém especial. Para mim e para todos que o amavam.
A moça se levantou, beijou o velho no rosto e foi embora. O senhor inerte, com os olhos lacrimejados, forçava os lábios segurando para que a primeira lágrima não escorresse. Após alguns instantes, olhou para o céu estrelado, e a lua cheia que brilhava cintilante fez-se refletir na lágrima que escorria. Na boca, exibia-se um pequeno sorriso.
- O sol amanhã vai voltar..."
(Texto produzido para a matéria de Jornalismo Impresso
no ano de 2008 para definir a questão: "Quem sou eu?")

7 comentários:

Anônimo disse...

Que honra, o primeiro a comentar!!
Antes de mais nada, parabéns! Tanto por este projeto como pela crônica. Ainda estudante já tem traços de profissional. E continue assim que com certeza será um grande profissional!

Unknown disse...

Claudio.
Matéria Niva.
Nem o que falar né. De um simples texto sobre quem sou eu, redigiu um conto apenas dizer sobre vc.
Com certeza ser um grande escritor além de um bárbaro jornalista. Precisamos de pessoas mais humanas neste nosso emprego que as vezes é tão ingrato e tão desumano.
Continue assim Claudio.
Abraços

Anônimo disse...

Oi Claudio...É muito legal acompanhar as conquistas de alguém que a gente conheceu ainda adolescente. Eu espero acompanhar muitas ainda! Você é talentoso e dono de uma sensibilidade que encanta. Se vc, como jornalista, descrever tão bem, tenho certeza que suas matérias serão sempre repletas de informações verdadeiras. E com estilo e ética, ninguém te segura! Um beijo...Josi

Anônimo disse...

Parabéns!!! Adorei!, você tá escrevendo muito bem!!

beijo!

Anônimo disse...

Claudio, vc sabe que eu adorei essa crônica quando li a primeira vez.
É linda assim como todas as coisas que vc expressa através das palavras.
Parabéns!
Beeeeeeejo!

Camila Galvão disse...

Claudiao!!
adorei suas cronicas
muito profundas!!!
Conte sempre com meu apoio
um beijaoo!

Vanda Nigro disse...

Ao contrário da moça (semi-presente) estou totalmene presente aqui pra dizer que te AMO!!! Muito bom!! PArabéns... por isso e por muito mais (claro) és meu amigo, rs.
Bjos